O Instituto Brasil-Japão Integração Cultural e Social vem desenvolvendo um trabalho de registro histórico pertinente à imigração japonesa no Brasil, entrevistando alguns imigrantes e descendentes. A entidade concedeu permissão para nós reproduzirmos a transcrição de algumas destas entrevistas no nosso site. Apresentamos, portanto, como a primeira desta série a entrevista do sr. Oshikiri:
Entrevista Dr. Flavio Oshikiri
Dr. Flávio Tsuyoshi Oshikiri é um bem sucedido advogado, sócio-diretor da Ohno e Oshikiri Advogados, com atuação destacada na sociedade nipo-brasileira. Imigrante pós-Segunda Guerra Mundial, ocupou e ocupa cargos importantes em entidades brasileiras, sobretudo relacionadas com a comunidade Nikkei. Atualmente ocupa o cargo de presidente da Yamagata Kenjin Kai e de diretor do Jinmonken (Centro de Estudos Nipo-Brasileiros), entre outros.
Entrevistador
Dr. Flávio, sabemos que o senhor viveu a infância no Japão, em um período muito conturbado, durante a Segunda Guerra Mundial e depois no período logo após o término da conflagração. Gostaríamos que o senhor nos contasse um pouco da sua vivência nessa época.
Dr. Oshikiri
Pois não. Eu nasci no interior da província de Yamagata, na cidade chamada Obanazawa. É uma região que fica entre as montanhas, na cordilheira chamada Ōshu Sanmyaku. Ela se situa na parte central da região de Tōhoku, ao norte do Japão, banhado pelo Mar do Japão. No inverno vem vento frio da Sibéria que provoca nevascas tremendas nessa região montanhosa. Hoje mesmo estava vendo no informativo da televisão japonesa que perto da terra onde eu nasci a neve chegou a dois metro e quarenta centímetros! Por aí se pode ter uma ideia de como é essa região. Outra referência sobre o lugar você encontra na estória de Oshin – uma novela muito conhecida -, porque ela nasceu bem pertinho de minha casa, a uns três quilômetros de distância. Eu nasci em 1938 e logo depois o Japão entrou em guerra. Lembro-me de que quando tinha seis, sete anos, o Japão estava numa situação de penúria. Toda safra de arroz tinha de ser entregue obrigatoriamente para o governo e nós comíamos batata-doce, não havia possibilidade de escolha. O meu irmão, por exemplo, como foi obrigado a comer batata-doce todo dia, começou a detestá-la, depois não conseguia nem vê-la. Eu, apesar de ter vivido essa fase, continuei gostando de batata, interessante que naquela época, a maioria das famílias japonesas, mesmo pobres, tinham bastante filhos porque o governo central entendia que os filhos eram tesouros do país ou dos pais - para poder fortalecer o país tinha que ter bastante filhos. Então éramos nove irmãos. Sou o penúltimo, quase fora do previsto.
Entrevistador
A maioria das famílias, os seus vizinhos, tinha muitos filhos?
Dr. Oshikiri
Tinha muitos. Quando eu entrei no primário, tinha escola na própria vila onde morava. Acho que a vila tinha umas quarenta famílias, mas, como os filhos eram numerosos havia uma escolinha para atender aqueles do primeiro e do segundo ano do primário. Cada classe tinha quase vinte, trinta alunos, sendo três ou quatro de cada família. Lembro-me de que, como era no interior, não sentíamos efeito direto da guerra, não caiu bomba atômica lá. A gente vivia no meio da natureza. No verão não precisava piscina - tinha rio de água limpa, entrava nele, pegava peixe - ficava o dia inteiro brincando. No inverno tinha esqui e skate. Cada um fazia o seu. Pedia para o irmão mais velho comprar tábua e tentava ajeitar. Naquela época, nós jogávamos, também, beisebol. Mas, não no campo que havia em frente à escola porque ele era tão pequeno que não tinha condições de jogar. Esperávamos terminar a safra de arroz quando o arrozal começava a ficar com o chão duro - lá é que jogávamos. É interessante também observar o seguinte: a bola usada era feita por nós mesmos. Pegávamos um pedaço de pano, amarrávamos com linha e aquilo servia de bola. O bastão era um pau raspado e a luva era feita de palha de arroz. Tinha pessoas habilidosas capazes de fazer esse tipo de coisas. Então usava-se bastão de pau raspado, bola de pano e luva de palha de arroz, mas a gente não sentia problema nenhum - para criança era diversão muito interessante. Levei muitas broncas por não dar importância ao estudo, mas, brinquei muito. Foi uma infância no meio na natureza.
Entrevistador
Então não sentiu os efeitos da guerra.
Dr. Oshikiri
Senti a falta de comida, vestimenta, calçados, etc. Até o colegial, andava só com guetá no verão - conhece guetá? É um tipo tamanco japonês. Então era assim - extremamente pobre.
Entrevistador
Oshikiri é um nome muito tradicional na sua região?
Dr. Oshikiri
Não. Na província próxima a minha, mais ao norte, chama-se Akita - Akita-ken - e nessa região tinha bastante famílias com esse sobrenome. Na região onde eu nasci, muitas pessoas, também, se chamavam Oshikiri.
Entrevistador
Eram todos agricultores?
Dr. Oshikiri
Não, havia diversificação, mas, onde eu nasci eram agricultores.
Entrevistador
E as escolas, como eram?
Dr. Oshikiri
No local onde eu morava tinha o primário, mas era bunkō – literalmente significa escola repartida – na qual as crianças novas cursavam os primeiros anos, uma espécie de filial. O que me lembro daquela época é que tinha uma professora, Kanto sensei que era uma doçura de pessoa. E para terceiro e quarto ano era o professor Honma. Ele veio da região de Sakata onde Honma era família tradicional. Esse professor era muito bravo. Ainda me lembro do dia em que levei bronca na aula de biologia. Criávamos coelhos e ele escalonava alunos para alimentá-los, mas, um dia esquecemo-nos de dar alimentos - precisa ver a bronca que levamos no dia seguinte. Nunca me esqueço dessa bronca. Fazia parte das aulas de ciências, ainda que muito elementar. Além disso, estudava-se japonês, música infantil, matemática, essas coisas. O quinto e sexto ano deveria ser cursado em outra escola distante quatro quilômetros e todo dia tinha que ir a pé, não tinha bicicleta, ônibus ou qualquer outro veículo de transporte. No inverno era terrível, tinha que andar em fileira, mas acho que isso fez que, de certa forma, eu ficasse bem mais forte. Na época, tinha onze ou doze anos. No ginasial (chūgakkō), quando tinha treze, quatorze anos, fui para outra escola distante mais dois quilômetros - andava todo dia seis quilômetros para ir e para voltar, mas andava de grupo.
(continua)