No dia 21 de outubro do corrente ano (2019) faleceu o professor Koichi Mori (USP), pesquisador renomado na área de estudos da imigração japonesa no Brasil. O professor foi, também, um colaborador constante do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros (Jinmonken – サンパウロ人文科学研究所:人文研), tendo, inclusive iniciado a sua carreira de pesquisador nessa instituição. Nascido em 14 de abril de 1955, na cidade de Utsunomiya(宇都宮市), província de Tochigi (栃木県 – Japão), formou-se, no ano de 1978, em Economia pela Faculdade de Economia e Ciência Política da Universidade de Meiji(明治大学政治経済学部), uma das mais conceituadas universidades particulares de Tóquio. Depois continuou a pós-graduação na mesma faculdade alcançando o grau de mestre em ciências políticas, no ano de 1982 – título reconhecido pela USP. Ele veio ao Brasil, em 1983, como bolsista da Associação Nipo-Brasileira de Intercâmbio (ANBI – 日本ブラジル青少年交流協会), tornando-se pesquisador visitante do Jinmonken e do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP). Desde então se dedicou ao estudo da imigração japonesa no Brasil, sobretudo, dos imigrantes originários de Okinawa (沖縄県).
Durante a sua primeira estadia no Brasil que durou até 1986, Koichi Mori se dedicou, maiormente, ao estudo das religiões novas dos imigrantes japoneses. Ele trabalhou em conjunto com Hirochika Nakamaki, conhecido especialista no estudo antropológico de religiões, e Koei Ogasawara, voluntário sênior da JICA(Japan International Cooperation Agency – 独立行政法人国際協力機構). Como resultado surgiu um seu trabalho sobre a seita Tenri (天理)publicado dentro do Relatório de Pesquisa IX – Novas Religiões Japonesas no Brasil (研究レポートⅨ ブラジルの日系新宗教) – do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros (1985). Também, participou da expedição de estudos da região Norte Nordeste tendo publicado um artigo sobre Juazeiro do Norte, uma cidade tipicamente nordestina (1985). É ainda dessa época outro trabalho sobre a identidade da comunidade Nikkei (1985). À época, o Regime Militar, que se instalara no país desde 1964, estava deixando o poder após o fracasso na economia. O relacionamento com o Japão adquiria outra conotação. Por exemplo, a JAMIC (移植民有限会社 – Imigração e Colonização Ltda.) e JEMIS (信用金融株式会社 – Assistência Financeira S.A.), órgãos do governo nipônico, não puderam continuar as suas atividades no Brasil (1979). Outrossim, a comunidade Nikkei crescera e adquirira uma feição característica que a diferenciava bastante da colônia de imigrantes de antes e logo após da II Guerra. Tudo isso consistia em objeto de estudos sociológicos e antropológicos que atraía o jovem pesquisador.
Em 1986, Mori retornou ao Japão, mas, por pouco tempo. No ano seguinte (1987) já se encontra novamente no Brasil, na cidade de São Paulo, como voluntário júnior da JICA, para participar do levantamento demográfico dos nikkeis e outros levantamentos semelhantes tendo como sede o Jinmonken. A sociedade brasileira vivia, na época, um período agitado tendo como objetivo maior superar os óbices, sobretudo, financeiros deixados pelo Regime Militar. A comunidade Nikkei, igualmente, vivia tempos agitados se preparando para a comemoração de 80 anos da imigração nipônica. As festividades coordenadas pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa (ブラジル日本文化協会 – 文協:Bunkyo) tiveram êxito alcançando grande repercussão. Levando em consideração o sucesso das festividades e a importância de deixar registrada a trajetória dos imigrantes resolveu-se elaborar a história dos 80 anos da imigração japonesa. Para isso constituiu-se uma comissão presidida por Katsunori Wakisaka, um dos mais ativos pesquisadores do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros – o Jinmonken. A comissão coordenou um grupo de trabalho que em três anos elaborou, em japonês, a História dos 80 Anos da Imigração Japonesa no Brasil (ブラジル日本移民80年史), publicada em 1991. No ano seguinte apareceu a versão em língua portuguesa da obra com o título de Uma Epopeia Moderna – 80 Anos da Imigração Japonesa no Brasil. Mori se engajou a esse grupo de trabalho, elaborando o capítulo referente à religião. Trata-se (provavelmente) da primeira obra sistemática sobre o tema.
A partir dessa época (final do decênio de 1980), Mori começa a trabalhar em três áreas nas quais desenvolve os seus principais trabalhos: imigração okinawana, decasségui e culinária japonesa no Brasil. Ao que tudo indica, o interesse pela imigração dos originários de Okinawa foi mediado pelos seus estudos sobre o xamanismo dos imigrantes daquela província no território brasileiro. Entretanto, nesse caso, também deve ter influenciado a sua participação no projeto internacional (1989-1992) coordenado por Hideshi Ohashi, financiado pelo Ministério da Educação e Ciência do Japão, sobre a imigração okinawana para a Bolívia. Quanto ao seu engajamento à pesquisa do fenômeno decasségui é mais do que entendível se levar em consideração o período. Na época, muitos descendentes de imigrantes japoneses iam trabalhar na “Terra do Sol Nascente”, reflexo da dificuldade econômica do Brasil e da prosperidade japonesa - na época, segunda maior economia do planeta. Mori tem oportunidade de participar de um projeto internacional sobre o tema, financiado pela Fundação Toyota (1989-1991; coordenadora: Masako Watanabe).
O terceiro tema de seu interesse tem uma história interessante. A culinária nipônica não gozava de qualquer prestígio entre os brasileiros até a década de 1980. Muito ao contrário. Era desprezada. Principalmente o peixe cru, seja na forma de sushi ou de sashimi, recebia apreciações sarcásticas. Surpreendentemente, toda essa repulsa começou a mudar. Não se sabe, ainda ao certo, os fatores que influenciaram tal mudança. Porém, o fantástico desenvolvimento econômico do Japão e a longevidade dos nipônicos, com toda probabilidade devem ter influenciados. E, também, o fato dos imigrantes japoneses e seus descendentes já fazerem parte da sociedade brasileira nessa época. Uma prova desta asserção pode ser verificada pela observação da comida japonesa ter se difundido mais em cidades como São Paulo nas quais existe um número grande de nikkeis. Qualquer que seja a razão é inegável que a culinária vinda da “Terra do Sol Nascente” já havia alcançado popularidade entre os brasileiros, inclusive sushis e sashimis. Mori percebe que havia um filão muito rico sob os pontos de vista sociológico, antropológico e etnográfico. E realizará pesquisas rigorosas e importantes sobre o assunto, tornando-se uma referência na área.
Ao mesmo tempo em que desenvolve pesquisas pioneiras, Koichi Mori se esforça para completar a sua formação acadêmica. Ele se inscreve no curso de doutorado na área de Ciências Sociais da Universidade de Tohoku (東北大学 – 1990-1994), sob a orientação do professor Hideshi Ohashi. A tese versa sobre a religião e imigrante okinawano no Brasil sob a abordagem de antropologia cultural. Por causa da sua situação peculiar – estava no Brasil – ele só obterá o título em 2001. Para isso retornaria ao Japão em 2000 para redigir a tese, defendendo-a no ano seguinte. Durante todo esse período não deixa de pesquisar e publicar, em grande parte na revista Jinmonken (人文研), órgão do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros. Assim, em 1998, publica Sengo ni okeru okinawa ken imin no esunikku shokugyô to shite no Kosutsuura (hôsei-gyô) - midoruman mainoritii he no michi (A Costura (Confecção)como Profissão Étnica dos Imigrantes Okinawanos Pós-guerra - O Caminho para Middleman Minority), in Jinmonken, v. 1. É ainda do mesmo ano: Shoku wo meguru imin-shi (1) - korono, Nôson koronia jidai (História da Vida Alimentar dos Imigrantes Japoneses no Brasil (1) - Era dos 'Colonos' e colônia Rural), in Jinmonken v. 2, 1998. No ano seguinte, na mesma revista, sai a continuação deste artigo: Shoku wo meguru imin-shi (2) - senzen/sengo no toshi ni okeru shoku seikatsu (História da Vida Alimentar dos Imigrantes Japoneses no Brasil(2) - A Vida Alimentar na Cidade no Pré/Pós II Guerra). (Jinmonken, v. 3, 1999).
Nessa época, o seu relacionamento com o Jinmonken se intensifica a tal ponto de fazer parte da diretoria do Centro a partir de 2002. Publica uma boa parte da sua produção na revista Jinmonken, órgão oficial do Centro. Amplia de igual maneira o seu domínio de atuação pesquisando outros temas como a questão da linguagem dos nikkeis. Nesse tema, deve-se destacar a sua participação no projeto internacional “Língua Falada dos Nikkeis no Brasil” (2002-2003), coordenada por Mayumi Kudô, com financiamento do Ministério de Educação e Ciência (文部科学省). No projeto teve oportunidade de estreitar conhecimentos com pesquisadoras da área, sobretudo, com as professoras da USP, Junko Ota e Leiko Matsubara Morales. Em 2003, Mori ingressa na carreira docente da USP e deixa o cargo de diretor executivo do Jinmonken ao qual havia sido nomeado naquele mesmo ano. Na USP, ele amplia ainda mais o seu campo de atuação. Destarte, começou a trabalhar no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), com o grupo da professora Sylvia Dantas DeBiaggi, sobre a questão mais geral da e(i)migração sob o ponto de vista da psicologia cultural. Também, começa a se interessar pelos assuntos de imigração sob a abordagem folclórica.
Em 2008, o professor Mori recebeu uma importante incumbência. Naquele ano instalou-se a Comissão Editorial da História de Cem Anos da Imigração Japonesa no Brasil - versão em língua japonesa – (日本語版ブラジル日本移民百年史編纂刊行委員会) da Associação para Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil(ブラジル日本移民百周年記念協会). Escolhido presidente dessa Comissão, ele desempenhou com eficiência a sua função possibilitando a publicação de cinco volumes projetados que acabou saindo em quatro tomos (o quarto e o quinto volumes saíram em um único tomo). Além desses cinco volumes versando sobre as atividades dos imigrantes na agricultura (Vol.1), na indústria (Vol.2), na cultura e na forma de viver (Vol.3 e Vol.4), sintetizadas e discutidas do ponto de vista antropológico (Vol.5) publicou-se um suplemento fotográfico acerca dos 100 anos da imigração. Trata-se de um livro bilíngue (português e japonês) com fotografias cedidas, em grande parte, pelo Museu Histórico de Imigração Japonesa no Brasil. No seu “Posfácio”, Mori afirma: “Com o lançamento deste volume, esperamos lançar uma nova luz sobre questões que dizem respeito aos dois países – nominalmente, questões como ‘povo’, ‘nação’ e também ‘modernidade’; nosso desejo é que através das fotografias, os leitores possam conhecer as experiências singulares que os imigrantes japoneses acumularam durante esse último século, e que cada grupo repense sob o prisma do imigrante as questões que mencionamos acima”. De certo, é também com esse tipo de olhar que o professor encarava o objeto de suas pesquisas.
Mais do que nunca, espremido entre duas culturas – a brasileira e a nipônica – Mori se debatia para superar conceitos como povo, nação, modernidade, globalização e outros dentro de uma perspectiva do futuro. Por isso tinha uma interação grande com os seus alunos, em particular, com os seus pós-graduandos. E quer que estes tenham o melhor conhecimento possível da “Terra do Sol Nascente”. Quando os seus pós-graduandos ultrapassavam o nível de mestrado e queriam se aprofundar mais em história e etnologia do Japão, Mori usando o seu amplo círculo de relações (universidades de Tóquio, Osaka, Tohoku, Hokkaido, Kanagawa e outras) possibilitava a ele(a)s o ingresso ao curso de doutorado nas escolas superiores japonesas. Assim, não é de espantar que por ocasião do seu inesperado falecimento, tenham sido seus alunos e suas alunas o(a)s que mais lamentaram e expressaram os seus sentimentos de tristeza – o que mais um professor poderia esperar? Sem dúvida, uma apoteose!
E, para nós pesquisadores, sobretudo do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros – o Jinmonken – fica a sensação de que perdemos um colega dedicado, um intelectual de grande capacidade, na plenitude das suas forças desbravando searas tradicionais como religião japonesa no Brasil e novas como estudo antropológico da presença da cultura latino-americana no Japão. Ultimamente estava engajado, também, em uma pesquisa coordenada por Eliza Tashiro Perez (USP) acerca do contato histórico do Japão com o Ocidente dentro do qual a imigração ao Brasil está inserida. Isso só para citar algumas áreas nas quais estava atuando. Sem Koichi Mori, o amanhã de estudos nipo-brasileiros nunca mais terá o brilho que prometia ter. Uma pena!